terça-feira, 27 de maio de 2008

Como passar um fim de semana diferente...


Como penso ser fundamental preservar e não esquecer a nossa cultura, no fundo, a única coisa que não nos podem tirar é essa identidade. Assim, pensando neste nosso país e no palco cultural extraordinariamente vasto que nos corre no sangue, acho por bem propor uma visita ao nosso Portugal. Neste sentido,deixo-vos aqui uma sugestão para uma escapadinha ou, eventualmente, um fim de semana diferente:


Rota do Fresco do Alentejo - Segredos debaixo da cal


Eram consideradas grosseiras, não artísticas, e até se dizia que não existiam. Resgatadas às camadas de argamassa que antes as cobriam, agora as pinturas murais do Alentejo ressuscitam como novas estrelas do nosso turismo cultural.

É um pouco como a cerâmica das Caldas. Ou como a música de elevador, os filmes de série B e a literatura "pulp fiction". Porque também a pintura mural portuguesa constitui um património conotado com a baixa cultura - popular, barato, e desqualificado esteticamente pelos arautos da alta cultura, o que, neste caso, signifi ca a história da arte convencional. Marginalizada pelos historiadores, foi como se a pintura mural nunca tivesse existido no nosso país. Agora, no entanto, tal como as supracitadas formas de pretensa baixa cultura, também este género ornamental começa a ser reabilitado e devidamente apreciado.


Esta reavaliação não deverá, contudo, iludir o inegável: que se trata efectivamente de uma expressão artística derivativa, que reconduz quer à chamada "síndroma da periferia" - a adaptação retardatária de correntes artísticas urbanas e contemporâneas, e para uma linguagem vernacular -, adaptando ao universo rural e popular essa mesma linguagem erudita. É, privilegiadamente, uma forma pictórica decoradora de interiores arquitectónicos, na maioria de função religiosa, decorrente de encomendas efectuadas por clientelas economicamente desfavorecidas, como irmandades, confrarias e, em geral, pequenas paróquias de província. A outra face da moeda, só verdadeiramente discernida no presente clima de relativização pós-moderna, é que algumas destas pinturas têm genuína beleza e denotam talento artístico. Ou que, mais frequentemente, são mesmo má pintura e traem um gosto duvidoso, mas, em contrapartida, revelam imaginação e fantasia, manifestando uma notável capacidade de integração cenográfica nos espaços que decoram.


Os exemplos mais remotos encontram-se em templos românicos, com predominância para o Norte do país, mas é nas Beiras e, sobretudo, no Alentejo onde se encontram em número mais significativo, conhecendo a sul uma maior longevidade, que se estende até ao século XVIII. O Alentejo é, de facto, um dos centros privilegiados da pintura mural portuguesa, onde - apesar de alguns atentados a esse património perpetrados inclusive por quem era suposto recuperá-lo - se encontra um conjunto de exemplares remanescentes significativo, em termos de quantidade, variedade e, inclusive, de qualidade. Faz, então, todo o sentido a criação de um novo conceito de turismo cultural centrado na pintura mural, endossado pela AMCAL (Associação dos Municípios do Alentejo Central, constituída pelos municípios de Alvito, Cuba, Portel, Vidigueira e Viana). Caso raro neste tipo de iniciativas, a sua grande mentora é uma especialista em História da Arte, Catarina Vilaça, que não apenas centrou nos frescos a sua carreira académica, mas sensibilizou as entidades camarárias e as populações locais para o projecto Rota do Fresco do Alentejo, tendo em vista a sua preservação e restauro (chama-se "do fresco" por uma questão de "marketing", mas mais rigoroso seria dizer da "pintura mural", porque também integra revestimentos a seco, como vamos poder constatar).


Uma coisa quase ou nunca vista entre nós: uma "doutora" que vai a feiras de turismo defender a sua dama e, sempre que pode, ela própria guia os grupos de visitantes. Seguimo-la durante um dia, através da rota interconcelhia, e o que se segue é uma sinopse das suas apresentações. Como o nome já indica, a rota interconcelhia passa por quatro concelhos da AMCAL, mas há mais cinco rotas, cada uma delas especializada num dos concelhos associados.


Antigo Convento de S. Cucufate (Vidigueira)

A prova de que a pintura mural tem uma longa e fascinante presença alentejana é que, neste preciso momento, basta arranhar uma parede para se fazerem novas descobertas. E mais: que, em termos de interpretação, a primeira não é forçosamente a melhor e até que os raciocínios de decifração podem constituir um bom entretenimento. Tudo isto disparado de uma assentada em pouco mais de meia hora, como um teatro de mistério e revelação, tendo por exíguo cenário o antigo Convento de S. Cucufate, a meio caminho entre a Vidigueira e o Alvito.


O lugar de S. Cucufate - santo martirizado por degolação no século IV, desde sempre mais popular em Barcelona - é sobretudo conhecido como villa romana, edificada entre os séculos I e IV da nossa era. Tinha então uma ocupação civil, vindo a ser reocupado desta feita religiosamente no século XIII pelos monges de S. Vicente de Fora, que aqui erigiram um modesto convento. Abandonaram-no em finais do século XVI, mas S. Cucufate haveria de ressuscitar poucos anos depois, desta feita pelas mãos da Misericórdia, que nele construiu a ermida de Santiago. Agora está afecto ao Ippar, que inaugurou um centro interpretativo em 2002.


Toda esta contextualização pode soar algo supérflua para quem vai ver murais, mas logo se percebe que tem tudo a ver. Enquanto os olhos percorrem atónitos os tectos cobertos de figuras pitorescas, a guia desvia a nossa atenção apontando para uma pequena cabeça discretamente pintada sob num arco. Em 1989, o professor Vítor Serrão esteve aqui e identificou-a como representado Nossa Senhora e o Menino e datando-a do século XVI. Mas, para começar, o Menino Jesus não é visível, depois a cabeça feminina foi elaborada num reboco muito limitado - o que leva a pensar que se trata de um esboço -, e, em terceiro lugar, denota uma perfeição de traço pouco corrente nos pintores alentejanos daquela época. Equacionadas estas evidências, Catarina Vilaça conclui que não é despropositado considerar tratar-se de um esboço de pintura mural do período romano.


Ainda os visitantes ponderam este vertiginoso mergulho no túnel do tempo, já a guia encaminha o grupo para uma parede lateral, no último tramo da igreja, coberta por um andaime. É o indício de uma inspecção iniciada por alturas da inauguração do centro interpretativo no ano passado e entretanto não concluída. De modo que os visitantes não vêem grande coisa pintada, mas têm o privilégio de testemunhar trabalho em progresso: roubado à camada de cal que cobria a parede, é evidente um vaso, pormenor que todos os devotos associam à Anunciação, presumindo-se que a pintura data de fi nais do século XV a inícios do XVI.


Vamos então em duas campanhas, duas peças de pintura mural separadas por cerca de um século. Uma terceira encontra-se na parede fundeira da ermida: baptismo de Cristo na parte superior, e retábulo fingido de talha maneirista na inferior, representando S. Pedro e S. Paulo presumivelmente ladeando o orago, que, convém especificar, é Santiago Mata Mouros. Há indícios de que esta pintura integrável na oficina de José de Escobar (cerca de 1600) esconde uma outra mais antiga e de tema mariano. Está por investigar a fundo, mas permite, para já, concluir a existência de uma quarta campanha, que provavelmente será contemporânea daquela no último tramo da igreja. E há mais: os toscos mas exuberantes anjos músicos - um dos temas mais recorrentes na pintura mural alentejana - que decoram, desde meados do século XVII, a abóbada de berço, e que foram complementados, já no século seguinte, por anjos barrocos, que é como quem diz mais rosados e rechonchudos. Em suma, S. Cucufate dá pano para mangas, em termos de pintura mural.


Igreja Matriz de Nossa Senhora da Assunção (Alvito)

Depois da refutação da inexistência de uma tradição do fresco no Alentejo, a impugnação de outro preconceito: a noção leviana de que toda a pintura mural da província é grosseira ou destituída de valor artístico. E um excelente contra-exemplo é a Igreja Matriz do Alvito, que data do século XVI, mas que integra no transepto as capelas tumulares dos Lobos, senhores e mecenas da vila, que as construíram em finais do século anterior. São estas, ou melhor, a pintura mural que se conserva na banda do Evangelho do transepto, que faz figura de prova.


É um caso estranho à primeira vista, porque o que há para ver não é uma pintura propriamente dita, mas sim o desenho que a sustentou. Essa singularidade requer que seja introduzida a distinção entre pintar a fresco e a seco: na primeira, os pigmentos da pintura são directamente fixados no reboco fresco, enquanto no segundo se espera que este seque. Ora a pintura a seco implica o uso de aglutinantes (mistura com cola), que dita o desaparecimento progressivo das cores, ao passo que a pintura a fresco não sofre desse processo de deterioração, podendo durar séculos.


O que aconteceu na decoração parietal deste capela foi que o pintor desenhou a fresco, mas aplicou a policromia a seco, motivo porque só a primeira se manteve. E o que se conservou é fantástico: um só painel, que terá sido realizado entre 1481 e 1499, com as representações de Santo André, Santiago Maior e S. Sebastião. Não é um tema comum na época, mas o preciosismo do desenho impressiona, desde o cuidado no tratamento das vestes à atenção dos contornos, passando pela invulgar composição em perspectiva. A milhas, por consequência, dos toscos anjos músicos que adornam S. Cucufate e tantos outros templos alentejanos.


A Matriz do Alvito é também uma ilustração complementar da continuidade da produção de pintura mural da região, quando integra 30 falsos caixotões pintados na abóboda de berço redondo da capela-mor com composições vegetativas (inícios do século XVII), a "Lamentação de Marias" e "S. João Evangelista" na mesa do altar e, mais surpreendente de tudo, representações do "Paraíso" no quarto tramo das naves laterais (século XVIII). Caso raro, impossível numa igreja do Norte, aqui se pintam em medalhões cenas paradisíacas envolvidas por desnudas e muito apetitosas Cariátides.


Igreja de Faro do Alentejo (Cuba)

Testemunhada a excepção artística, é altura de contemplar a quinta-essência do "kitsch" na pintura mural alentejana. O cenário é a Igreja de Faro do Alentejo, vila que data de 1617, sendo mais provavelmente da década seguinte as pinturas murais que decoram as superfícies parietais do pequeno templo. Percebe-se imediatamente os fracos recursos artísticos dos pintores (sabe-se que foram vários, pela manifesta diferença de traços), encarregues de simularem nos alçados os retábulos de pintura sobre tábua típicos dos altares.


Então há pés com seis dedos, pés que parecem hematomas, pés com chinelos para disfarçar a dificuldade de os desenhar, cabeças de cavalo que parecem de santos, mas também cabeças repetidas para santos diferentes, molduras assimétricas para ganhar espaço na representação das cenas, e - grande apoteose desta ginástica do improviso - espadas e pernas de cavalos cortadas porque simplesmente não cabiam na moldura. É, aliás, uma prova de humor e "fair play" da responsável pela Rota do Fresco ter puxado esta imagem de Santiago Mata Mouros para a capa do folheto que a publicita.


Que se trata de pintura amadora e desqualificada é óbvio, mas reduzir tudo a estas fraquezas é demasiado simplista. Porque, por outro lado, os frescos da Igreja de Faro do Alentejo são uma vertigem de cor, que consegue genuinamente animar o humilde espaço sagrado, e sobretudo porque os pintores, apesar ou graças às suas limitações, acabaram por demonstrar imaginação e versatilidade, não destituídas de analogias com os princípios que nortearam as vanguardas das artes plásticas do século XX.


Visitámos a Igreja de Faro, em Cuba, em substituição da Ermida de Nossa Senhora da Represa de Vila Ruiva, que é a que vem no programa, e que, por seu turno, é, por vezes, substituída pela matriz da mesma localidade, mas ambas estão actualmente em obras. Mesmo assim, tentámos a nossa sorte em Vila Ruiva, mas nem a presença da mentora da rota, nem de um jornalista, ou sequer os telefonemas para o Ippar, convenceram o pároco, os conservadores ou quem quer fosse a abrirem a porta. Até parece que as igrejas em Vila Ruiva são propriedade privada…

Ermida de S. Geraldo De Alcáçovas (Viana Do Alentejo)

Igreja construída pelos devotos locais em 1599, a Ermida de S. Geraldo serve nesta rota para explicar em maior pormenor a criação e recuperação dos frescos alentejanos. Isto porque, numa das paredes da capela-mor, se encontra uma instância perfeita para a exemplificação do processo de (re)descoberta : uma fi gura feminina e um prato, que se identificam com Santa Ágata - aquela a quem arrancaram os peitos - e, ao lado, numa espécie de janela, vestígios de uma pintura mais antiga, que ressuscitou quando parte do reboco da campanha mais recente caiu.
Uma pintura, na época áurea do fresco alentejano, começava por ser um cartão ou esboço, depois transposto para quadriculado, para efeitos de diminuição ou aumento do tamanho das figuras. Na maior parte dos casos, o tema era escolhido pelo encomendante, por vezes na base de pequenas gravuras, ou, na sua ausência, de uma conversa com o pintor.


Este tratava de aplicar uma primeira demão de argamassa, chamada "arriccio" (toda a terminologia é italiana), constituída por uma porção de cal por duas de areia, sempre de cima para baixo e da esquerda para a direita. Assim constituía o reboco, sobre o qual aplicava o esquema do desenho em vermelho natural, só para verificar se este se adequava ao espaço preestabelecido, processo tecnicamente designado por "sinopia". Numa segunda fase, a argamassa era preparada em proporções inversas, ou seja, duas de cal por uma de areia, segunda camada chamada "intonaco". Naturalmente, esta nova intervenção cobria o primeiro esboço, implicando um novo desenho, desta feita já com todos os detalhes incluídos.


Este processo de pintar a fresco conheceu variantes - só uma demão em muitas igrejas do Norte, por as superfícies de granito agarrarem melhor o reboco, só uma também em campanhas de sobreposição como no caso desta capela, uma vez que a antiga já funcionava como primeira demão. Foi usado em Portugal até meados do século XX (inclusive por Almada Negreiros), depois tornou-se demasiado complicado, moroso, ou simplesmente ficou fora de moda.


Os mesmos passos, mas dados em sentido inverso, servem actualmente para resgatar os frescos ao esquecimento, com a diferença de os pincéis e espátulas empregues pelos pintores originais serem substituídos pelos bisturis dos recuperadores. A Rota do Fresco do Alentejo propõe-se igualmente revitalizar a ancestral técnica de pintar a fresco e, em breve, vai ser possível aos visitantes praticarem os seus rudimentos.


Capela de S. Brás (Portel)

Na rota interconcelhia, visitam-se apenas quatro concelhos/edifícios religiosos, e, na circunstância, a opção foi deixar de fora a Capela de S. Brás, em Portel, que, no entanto, pode ser coberta noutros programas. É porventura intercambiável com a Igreja de Faro do Alentejo, em Cuba, porque se trata de um exemplo de fresco de uma ingenuidade e amadorismo gritantes, mas que também revela um seguro engenho e uma intuitiva ponta de génio.


A igreja, que, no século XVII, servia os habitantes de Vale Flor, a antiga judiaria, e, depois disso, passou a ser só usada como capela do cemitério, é ainda relevante quando ilustra a transição da função catequética para a decorativa na evolução do fresco alentejano. Assim, se nas superfícies da capela-mor se encontram figuras de S. Gregório, da Virgem Maria e do orago S. Brás, estas depois desembocam no tecto em motivos geométricos, fantasistas e vegetativos, que, apesar de colados aos primeiros, não têm qualquer relação temática ou estética. Daqui procede a bonita flor que serve de logótipo à Rota do Fresco, mas a verdade é que a maior parte destes motivos decorativos está mal desenhada, as linhas rectas acabam tortas, descontínuas e por aí adiante. Não importa, porque, à semelhança da Igreja de Faro do Alentejo, há, por outro lado, manifestações de talento do pintor, nomeadamente na forma como confere volume aos losangos, e o conjunto é uma verdadeira festa a fresco, um profuso e hipnótico banho de policromia.


Ermida de S. Sebastião (Alvito)

Não tem um dia inteiro para reservar aos frescos alentejanos? Quer primeiro ver uma amostra antes de decidir fazer um itinerário? A resposta para ambas as questões é a Ermida de S. Sebastião, que, ao contrário da maior parte dos edifícios da rota, está sempre aberta. O reformado sr. Alfredo abre-a todos os dias de há dez anos a esta parte e dá explicações pitorescas a quem o quiser ouvir. Detém um núcleo interessante de pintura mural datada de 1611 e atribuída ao incontornável José de Escobar, onde se destaca uma sinfonia de anjos músicos-cantores, que reveste o abobadamento.


Luís Maio ("Fugas", PÚBLICO, 2003)



HORÁRIOS
De 01-01-2004 a 31-12-2008 Todos os dias


OBSERVAÇÕES
Roteiro inclui visitas ao antigo Convento de S. Cucufate (Vidigueira); Igreja Matriz de Nossa Senhora da Assunção (Alvito); Igreja de Faro do Alentejo (Cuba); Ermida de S. Geraldo De Alcáçovas (Viana Do Alentejo); Capela de S. Brás (Portel); Ermida de S. Sebastião (Alvito).


Um abraço a todos


João

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